13 março 2013

A Herança

Desde criança ela tinha certeza de duas coisas, nunca casaria e jamais teria filhos. Não que ela não acreditasse no amor ou odiasse crianças, ela apenas sabia que alguns amores apodrecem e não saberia lidar com crianças, mal sabia lidar com ela própria. E tinha aquele outro problema, sua herança. Não é de dinheiro que estamos falando, é uma herança diferente, que você provavelmente não levaria a sério, nem ela sabe se acredita ao menos, mas arriscar seria perigoso demais. É a escuridão, o vazio, a loucura, os monstros e o medo. Essa era sua grande herança.

Lembrava dos monstros do seu pai, tinham olhos arregalados, voz grossa, eram surdos e inquietos. Antigamente tinham marcas de furos em seus braços, um nariz que escorria, uma tosse incessante. Surgiam quando menos se esperava, podia ser durante um sorriso inclusive. Eles sempre escapavam. Ela os detestava e jurava baixinho que jamais teria aqueles monstros, que lutaria contra eles, que seria diferente. Grande engano, aqueles monstros já viviam dentro dela, e hoje são tão fortes quanto aqueles eram.

Não se pode culpar uma casa pelo que vive dentro dela, mas isso não importa, é quem vive ali que determinará sua ruína. Talvez, o que vivemos antes mesmo de sermos capazes de lembrar é o que nos define agora. E o futuro? Ele não existe.

A maldade é um manto escuro que molda sua alma. É como uma droga, que certamente não atingirá só você, haverá respingos de infelicidade por todos os lados. E são capazes de se reproduzir, uma tristeza hoje pode virar uma morte amanhã, não duvide disso. Ela sabia que sua herança não lhe permitiria ter filhos, não porque não pudesse, mas porque não cometeria o mesmo erro que os outros. Cortaria o mal pela raiz. 

Mas e o amor? Existe, mas é frágil como asas de borboletas e é a promessa de infinito que acaba por quebrá-lo. Você pode pensar que o amor é algo bom, claro como o sol, está errado. Eu e ela sabemos que o amor é cinza, e varia constantemente de escuridão infindável há claridade confortável.

Todos sabem que querer é diferente de fazer. Mas ela ainda não sabia. Pobre criança, ainda não entendia que o futuro fica repetindo o passado, em uma eterna brincadeira de rodar. Tudo acaba aonde começou.

Não lhes queria dizer o final dela, ela pode escutar, mas guardar segredo não é uma de minhas qualidades.

Ela se casará, e seu vestido será vermelho. Vermelho do sangue que irá derramar, dos olhos infantis assustados que irão lhe fitar. Das amoras apodrecidas do quintal que jamais limpará. Da raiva que irá lhe consumir enquanto deslizará a faca, que nem ao menos estará afiada, no coração daquele que amou. Respingos de sangue salpicarão tudo ao redor, e ela se lembrará de sua promessa. Tarde demais. 

Mal sabe que sua mãe e seu pai disseram a mesma coisa há alguns anos atrás. 


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